Lorrayne e Danny viveram um ano e dois meses de expectativa, da primeira ida à Defensoria Pública em Mendes, no centro-sul fluminense, à decisão judicial que lhes garantiu o direito à certidão de nascimento, à carteira de identidade e a todos os demais documentos com gênero e nome femininos.  A ansiedade foi grande, mas nem tanto quanto a que aflige dezenas de transexuais em outras comarcas do estado, há dois anos ou mais à espera de sentença similar. 
 
No município com cerca de 18 mil habitantes, as duas amigas fizeram-se pioneiras: nunca o juízo único local  havia registrado uma ação do tipo.  Lorrayne foi a primeira a procurar a Defensoria, em janeiro de 2016.
 
– Ela me pediu orientações para se casar com o companheiro com quem vive em união estável há 15 anos e manifestou sofrimento por ter que ostentar identidade masculina. Expliquei que seria possível ajuizar esta ação de requalificação civil e ela preferiu aguardar a sentença para só depois casar, já com gênero e nomes corrigidos – conta a defensora  pública Mirela Assad.
 
No dia seguinte, Lorrayne tornou a procurar a Defensoria.
 
– Ela voltou acompanhada da amiga Danny. Era um caso idêntico. Danny também acalentava o sonho de ser requalificada civilmente. Tal qual Lorrayne, está prestes a casar e também decidiu aguardar a sentença da ação de requalificação civil. Passei a atender as duas simultaneamente, recolhendo documentação e fornecendo ofícios para obtenção de certidões junto aos cartórios distribuidores – continua Mirela.
 
A sentença favorável a ambas, porém, veio de juízas distintas. A decisão sobre a demanda de Lorrayne foi dada em 23 de março último pela titular da comarca de Miguel Pereira, Katylene Collyer Pires de Figueiredo, que cobria as férias da juíza de Mendes, Denise Salume Amaral do Nascimento. Dias depois, essa, já de volta ao trabalho, em 4 de abril, se debruçou sobre a história de Danny, acolhendo na íntegra o pedido da Defensoria. 
 
Lorrayne e Danny estão entre os cerca de 80 transexuais inscritos para cirurgia de transgenitalização no Hospital Universitário Pedro Ernesto, da UERJ, mas as duas sentenças destacam que o procedimento médico não é definidor da identidade de gênero. 
 
 “Há casos em que o transexual não poderá realizar a cirurgia pelos mais diversos motivos (pressão alta, diabetes e outras doenças) e nem por isso vai deixar de se apresentar como o gênero com o qual se identifica. Assim sendo forçoso concluir-se que a definição da identidade sexual desta forma não está nas genitálias e sim em um conjunto de fatores psicológicos e sociais que devem ser respeitados e salvaguardados em atenção ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”, registrou a juíza de Miguel Pereira, referindo-se à autora Lorrayne. 
 
O relatório da juíza de Mendes sobre a autora Danny não é diferente: “A identidade de gênero da requerente não corresponde ao sexo biológico atribuído e registrado no momento de seu nascimento. Assim, não é razoável o juízo exigir o percurso de todo o processo da cirurgia de mudança de sexo, para só depois conceder a requalificação civil”.
 
A defensora Mirela Assad já ressaltara esse argumento nas iniciais: “O pedido aqui deduzido vincula-se não à condição anatômica modificada, mas à identidade de gênero vivenciada pela autora. Além disso, o próprio Estado brasileiro não tem sido capaz de assegurar adequadamente no sistema de saúde pública os procedimentos de modificação corporal assistida. Logo, não pode este fato constituir-se em mais uma barreira para a realização da dignidade da pessoa transexual”, destacou.

Em setembro de ano passado, o Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis) da Defensoria Pública do Rio divulgou relatório com dados relativos à tramitação de ações de requalificação civil entre dezembro de 2010 e junho de 2016. Dos 170 ajuizamentos, 69 foram analisados. Desses, 47 foram considerados procedentes e outros 17, parcialmente procedentes. O tempo médio de espera para decisão procedente, integral ou parcialmente, era de 447 dias, ou cerca de um ano e três meses.  Outros processos tramitavam há 1245 dias, na média, sem análise.



VOLTAR