Evento realizado na terça-feira (11) reuniu defensoras(es) do Rio e de outros estados,

além de juristas e demais operadoras(es) do Direito

 

A família de W. S. não sabe como, mas o jovem de 21 anos foi apontado como integrante do grupo que em novembro fez policiais militares reféns no Morro dos Prazeres, e por decisão judicial de 2ª instância está preso há mais de 30 dias. Sem muitas informações sobre o que de fato embasa a acusação do também morador da comunidade, o pai, a mãe e a irmã dele estiveram na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ) e em ato público a favor da presunção de inocência alegaram que W. S. nada tem a ver com o caso. Realizado na Sede da instituição com a participação de defensoras(es) fluminenses e de outros estados, de juristas e demais operadores do Direito, o evento promoveu o debate sobre o aumento considerável no número de prisões em razão de posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) contrário ao princípio jurídico em questão.

Conforme previsto na Constituição, a presunção de inocência garante a todos o direito de responder em liberdade até a conclusão do julgamento mediante decisão final sobre a culpa ou a absolvição. Evita-se, com isso, que uma pessoa considerada inocente pague previamente por um crime que não cometeu e essa é a principal alegação da DPRJ para que o STF reveja o posicionamento firmado em 2016. Na ocasião, a corte autorizou o início do cumprimento da pena a partir de decisão condenatória proferida em 2ª instância e isso, de acordo com as defensorias públicas do Rio de Janeiro e de São Paulo, vem reforçando a cultura punitivista do Judiciário também em 1ª instância.

– Meu irmão é um rapaz excelente, estudioso e de boa índole. A gente vem de família humilde e nunca passamos por cima de ninguém, mas agora estamos vivendo essa situação constrangedora e muito triste. Tenho certeza que jamais passou pela cabeça dele que um dia isso poderia acontecer e eu jamais estaria aqui, falando com todos vocês, se não tivesse total certeza da sua inocência. Não seria hipócrita a esse ponto – disse chorando a irmã.

– A Justiça não diz para nós como chegaram até ele, um adolescente sem nenhum envolvimento ilícito e que tinha acabado de concluir o Ensino Médio com 96% de frequência escolar. Ele estava em seu convívio social normal e recebeu voz de prisão em um posto do Detran, onde deu entrada na carteira de habilitação que ganhou do pai pelo aniversário e por ter concluído os estudos. Essa situação tem sido amargurante para todos. É uma dinâmica completamente absurda – desabafou um amigo da família e professor do jovem em um curso comunitário.

Para as defensorias, o entendimento do STF influencia as decisões de 1ª instância principalmente nas audiências de custódia (implantadas no Rio em 2015 para que a legalidade da prisão em flagrante seja analisada por um juiz em até 24 horas). De acordo com dados apresentadados no “Ato Público em Defesa da Presunção da Inocência – Porque não há culpa enquanto houver dúvida”, na terça-feira (11), o índice de prisões provisórias decretadas no curso da ação penal aumentou cerca de 20% no Rio de Janeiro e 18% em São Paulo, ficando a taxa de encarceramento nessas audiências em 80% e 68% no dois estados, respectivamente, nos primeiros meses do ano.

– A máquina punitivista no Brasil é gigantesca e lidar contra ela é uma tarefa de enorme dificuldade para todos. Não basta estar no Fórum e nas salas de audiência fazendo a defesa individualmente enquanto vemos que o sistema não melhora e, muito pelo contrário, que tristes modificações têm ocorrido, num histórico recente, piorando e agravando o punitivismo e o encarceramento. Portanto, precisamos juntar forças para que a nossa visão sobre isso e as transformações que tanto defendemos criem corpo e possam ecoar por todo o país – destacou na abertura do evento o defensor-geral do Estado, André Castro. “É absolutamente fundamental que o STF reveja sua atual posição em relação à presunção de inocência”, concluiu.

Índice de liberdades concedidas caiu 20%

Um levantamento da DPRJ apresentado no ato público mostrou que o índice de liberdades concedidas nas audiências de custódia, a partir da decisão do STF, caiu de 40% para 20% no Rio e que em São Paulo foi registrada queda de 50% para 32% em média. Só não houve alteração no perfil dos presos, em sua maioria negros, pobres e de baixa escolaridade.

– Lembremos que o sistema jurídico-judicial brasileiro, além de fruto de um processo violento de colonização, segue sendo um instrumento da colonialidade a serviço do poder das elites. A relativização da presunção de inocência representa, mais uma vez, a faceta perversa da burocracia judicial, que permanece empenhada em dar continuidade ao genocídio físico e simbólico da população negra e, sobretudo, em perpetuar privilégios e vantagens historicamente usufruídos por homens, brancos, heterossexuais e proprietários – observou a coordenadora do Núcleo Contra a Desigualdade Racial da DPRJ (Nucora), Lívia Casseres.

Lembrando que em 2015 o STF reconheceu como “o sistema penitenciário brasileiro só gera mais e mais violência”, o coordenador de Defesa Criminal da DPRJ, Emanuel Queiroz, nesse ponto apontou uma contradição. Em 2016, ou seja, apenas um ano depois dessa constatação, a corte então decide pelo início do cumprimento da pena a partir da condenação em 2ª instância e, com isso, provoca aumento na massa carcerária brasileira hoje já superlotada com mais de 700 mil presos. Sem a presunção de inocência, diz Emanuel, “todo o sistema jurídico perde a essência”.

– A presunção de inocência foi relativizada e a decisão, colocada pela grande imprensa como algo apenas direcionado aos corruptos e ao crime do colarinho branco, está completamente fora da realidade da malha do sistema de justiça criminal, seletivo em sua essência e racista. Os cárceres brasileiros hoje estão inflados por jovens periféricos, negros e de baixa escolaridade, e eles representam cerca de 70% dos presos no país – pontuou Emanuel Queiroz.

– A Defensoria Pública tem o compromisso da promoção e da defesa dos Direitos Humanos e não vai se calar diante dessa tentativa de desestruturação total do processo penal brasileiro. A base da nossa sociedade é a dignidade da pessoa humana e ao relativizar a presunção de inocência o STF nega dignidade aos seus jurisdicionados – destacou.

Os impactos provocados no sistema penitenciário paulista foram apresentados pelo defensor público Matheus Moro, que demonstrou: 14 mil pessoas foram presas em São Paulo, de 2016 a 2018, após a condenação em 2ª instância. Já em relação à manutenção da prisão nas audiências de custódia, a média de 50% registrada em 2015 já chegou a 65% esse ano, levando-se em consideração somente dados apurados na capital.

– A Defensoria Pública de São Paulo hoje é responsável por 1/5 dos Habeas Corpus impetrados no Superior Tribunal de Justiça e as estatísticas mostram que em 40% dos casos conseguimos a obtenção de decisões favoráveis nas liminares, sendo de 50% as de mérito dos HCs. Com esse entendimento do STF a respeito da presunção de inocência, não há segurança jurídica – frisou.

“Haverá sangue nas mãos dos ministros", diz vice-presidenta da ABACRIM

O ato público seguiu com a participação em massa de juristas e demais operadoras(es) do Direito que, no púlpito, fizeram o uso da palavra em defesa da presunção de inocência. Para a advogada criminalista e vice-presidenta do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Eleonora Nacif, a tentativa de relativizar o princípio em questão é desprovida de amparo jurídico e “o que se tem, na verdade, é a invenção de uma nova espécie de prisão não admitida pela ordem constitucional, não prevista em lei e resultado de atividade legislativa proibida ao Poder Judiciário”. Trata-se, segundo ela, de uma franca violação da legalidade.

– A tese, contudo, é absolutamente incompatível com a ordem jurídica, seja em razão da impossibilidade em geral da ocorrência de patológica mutação constitucional em prejuízo do acusado no estado democrático de direito, seja pela ausência de qualquer evidência empírica revestida do mais singelo status de cientificidade a conferir validação para conferir que o dito sentimento social clamaria pela supressão arbitrária da garantia processual contida no artigo 283 do Código de Processo Penal – ressaltou Eleonora.

O artigo mencionado por ela informa que ninguém será considerado culpado antes de decisão transitada em julgado, ou seja, antes de esgotadas todas as possibilidades de que seja comprovada a culpa do réu. Com isso, todas as pessoas acusadas em ação penal são presumidamente inocentes até que se prove o contrário.

– Incomoda enterrar um artigo do Código de Processo Penal sem lhe dar um enterro digno. Até hoje a gente não sabe o que foi feito com esse artigo. Ele foi declarado inconstitucional ou foi declarado inválido? Juridicamente hoje ele é tratado como o que? É morto ou vivo? Não consigo entender porque não disseram isso. Trata-se de um fantasma que nos assombra – destacou o presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Fábio Tofic Simantob, também se referindo ao artigo 283.

A vice-presidenta da Associação Brasileira de Advogados Criminalistas do Rio de Janeiro (ABACRIM), Maíra Fernandes, falou sobre os efeitos do cárcere na vida das pessoas. Segundo ela, os detentos com os quais já conversou sempre destacam que “o preso sai da prisão, mas a prisão jamais sai do preso” porque com a obtenção da liberdade muita coisa pode ter mudado: “a família se desfez, o emprego foi embora, ele pode ter adoecido ou estar morto pelo alto índice de doenças no sistema prisional, principalmente de tuberculose”.

– A consequência da prisão indevida pode ser absolutamente fatal e isso precisa ser colocado com todas as letras porque a responsabilidade dessa decisão é grave. Haverá sangue nas mãos dos ministros que decidirem pelo fim da presunção de inocência – disse Maíra.

– É muito importante dizer também que ninguém está livre de sofrer um processo judicial penal, de ser réu em ação penal, de ser homônimo ou de ter o documento furtado e uma pessoa começar a praticar crimes em seu nome. Ou seja, ninguém está livre de um processo injusto e quando essa pessoa for vítima dessa situação, pode ter certeza, ela vai querer ter a presunção de inocência até a última instância – completou.

Ainda fizeram o uso da palavra no púlpito o presidente da ABACRIM, Thiago Minagé; o representante do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), Carlos Eduardo de Campos Machado; o mestre em Direito Penal e em Filosofia do Brasil e na América Latina, professor Juarez Tavares; o vice-presidente do Observatório da Mentalidade Inquisitória, Leonardo Costa de Paula; o desembargador aposentado e representante do Instituto do Estado Crítico do Direito, Sérgio Verani; o 2º vice-presidente da Associação dos Defensores Públicos do Estado do Rio de Janeiro (ADPERJ) e ex-defensor público-geral, André De Felice; e a defensora pública Lúcia Helena, representando a Associação Nacional das Defensoras e dos Defensores (ANADEP).

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Texto: Bruno Cunha

Fotos: Jaqueline Banai

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