Negro, 40 anos, trabalhador formal há quase duas décadas, sem antecedentes criminais, A. tem prisão preventiva decretada desde outubro do ano passado, acusado de participação num assalto à mão armada em Bangu, na Zona Oeste do Rio, em 13 de abril de 2019.  A. se transformou em réu com base somente em reconhecimento fotográfico feito pela vítima do roubo, que disse tê-lo identificado na imagem 3x4 de sua Carteira Nacional de Habilitação, documento que perdera na mesma data e bairro, ao sofrer, ele também, um assalto. Desde então, o homem sofre com a ameaça de ser preso e conta com a Defensoria Pública para provar inocência. 

Segundo consta do inquérito policial, o documento de A.  foi encontrado a bordo de um Toyota Corolla, mesmo modelo de carro utilizado pelo grupo que o havia assaltado. A carteira de habilitação foi, então, apresentada pela polícia à mulher vítima do outro roubo, que o identificou como autor do crime apenas pela fotografia da CNH. Inicialmente, ela havia descrito o assaltante como uma pessoa “de cor negra, altura aproximada de 1,70m, cerca de 25 a 30 anos, gordo, sem barba, cabelo crespo”. O acusado tem 1,80m.

— O reconhecimento fotográfico colhido, em total desrespeito à legislação processual penal, tem sido a causa de diversas injustiças, levando à prisão pessoas que não cometeram crimes, em completa afronta ao Princípio da Presunção de Inocência.  Vemos com muita preocupação provas como esta. Pretendemos indicar as falhas processuais e violações a direitos ocorridos no caso de A., processado criminalmente, com prisão preventiva decretada, tendo o reconhecimento fotográfico, produzido na delegacia, servido para amparar todo este desfecho — explica a coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio, Lucia Helena Oliveira.
 
O Toyota Corolla e o extravio da Carteira Nacional de Habilitação foram devidamente mencionados por A. em registro de ocorrência feito pelo mesmo em 15 de abril de 2019, dois dias depois do episódio.  Não houve quaisquer desdobramentos na investigação sobre o roubo de que A. foi vítima. Mas, quase sete meses depois, em 6 de novembro de 2019, foi instaurado inquérito para apurar as circunstâncias do assalto sofrido pela mulher e que, por conta do reconhecimento fotográfico, fez com que A. passasse a constar como suspeito.
 
O caso só teria novo desdobramento em outubro de 2020, um ano e sete meses depois, quando o Ministério Público ofereceu denúncia e requereu a prisão preventiva de A., pedido que foi acolhido pelo juízo da 1ª Vara Criminal de Bangu, com base, mais uma vez, apenas no reconhecimento feito através de imagem 3X4 da CNH extraviada.

A Defensoria Pública solicitou a revogação da prisão e, diante da negativa, a Coordenação de Defesa Criminal impetrou habeas corpus, ainda a ser apreciado pelo Tribunal de Justiça.  A peculiaridade da situação de A. levou a Defensoria Pública a também solicitar, no último dia 26, à 2ª Câmara Criminal, que realize sessão virtual para possibilitar sustentação oral em favor do paciente.
 
—  O fato de uma pessoa figurar como réu em um processo penal já é, por si só, um grande fardo, podendo gerar diversos e graves prejuízos em sua vida profissional e pessoal. Neste caso, a ação penal é completamente temerária, tendo em vista que não há indícios mínimos do cometimento do crime por A., baseando-se a imputação exclusivamente no reconhecimento efetuado pela vítima através de procedimento permeado de ilegalidades. Por este motivo, nós pedimos, juntamente à revogação da prisão preventiva, também o trancamento da ação penal por falta de justa causa para a sua deflagração, visando, desde já, à extinção da leviana persecução penal que, sozinha, já constitui verdadeira penalidade e causa transtornos na vida deste cidadão —  destaca a subcoordenadora de Defesa Criminal, Isabel Schprejer.

“A. não está foragido!  O mesmo, simplesmente, não precisa se recolher ao cárcere para exercer sua defesa, que, no momento, busca, com urgência, a revogação da arbitrária e descabida prisão preventiva, com o consequente recolhimento do mandado de prisão que tanto vem assombrando a vida deste trabalhador e de sua família”, argumenta a coordenação de Defesa Criminal no pedido de HC ainda não julgado.
 
E prossegue:
 
“Esta defesa técnica, inclusive, tendo perfeita ciência de seu paradeiro, que corresponde à sua residência fixa, não o aconselhou a se recolher ao cárcere, por não vislumbrar, de maneira alguma, esta necessidade, dada a flagrante ilegalidade do reconhecimento por foto que baseia a prisão preventiva, além da total falta de seus requisitos”.

 

Relatórios sobre falhas no reconhecimento fotográfico

Dados de dois relatórios, formulados pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPRJ) e pelo Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege), apontam a existência de falhas no reconhecimento fotográfico em delegacias do país. Segundo os documentos, de 2012 a 2020 foram realizadas ao menos 90 prisões injustas baseadas no método —  sendo 73 no Rio de Janeiro. Desse total, 79 contam com informações conclusivas sobre a raça dos acusados, sendo 81% deles pessoas negras.
 
O primeiro relatório, divulgado em setembro de 2020, citou 58 erros em reconhecimento fotográfico de junho de 2019 e março do ano passado. Todos eles no Rio de Janeiro.   O relatório mais recente, produzido com informações enviadas por defensores de dez estados diferentes e publicado em fevereiro de 2021, engloba o período de 2012 a 2020.  Neste estudo foram contabilizados 28 processos, quatro deles com dois suspeitos, envolvendo assim 32 acusados diferentes. O Rio de Janeiro é o estado que apresenta maior número de casos, com 46% das ocorrências. Cerca de 83% das pessoas apontadas como suspeitas eram negras. 
 
No total, 81% dos erros citados nos casos dos 90 réus foram constatados em prisões realizadas no Rio de Janeiro. A maioria das acusações foram por prática de roubo. Considerados os dois relatórios, conclui-se que 81% dos presos injustamente por reconhecimento fotográfico são negros, somando-se pretos e pardos.



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