Imagem: Arquivo pessoal


Em uma manhã de 2018, Igor Sudano foi ao cartório de sua cidade em busca de ajuda para mudar o seu registro de nascimento. À época, o niteroiense de 28 anos se identificava como homem transgênero e queria incluir o gênero e os pronomes masculinos no documento. Desde 2017, pessoas trans podem solicitar retificação dos seus registros diretamente em cartório, sem a necessidade de ação judicial. O processo, no entanto, não é simples. A papelada atualizada só chegou às mãos de Sudano após um ano de incontáveis idas e vindas à repartição pública.

Quando tudo finalmente parecia resolvido, algo mudou dentro do rapaz. O gênero masculino, que antes lhe caía bem, começou a provocar estranheza. “Eu não sabia mais como responder a perguntas do tipo: ‘por que você se identifica como homem?’”, conta Sudano, que comanda um estúdio de piercings e tatuagens e produz conteúdo na internet. Inseguro, ele fez pesquisas sobre identidade de gênero e encontrou uma palavra que até então desconhecia: “não-binário”. A partir dali, o termo, que refere-se a pessoas que não se identificam nem como homem nem como mulher, passou a ser usado por Sudano para descrever sua identidade.

Mas alterar os documentos dessa vez seria um pouco mais difícil. A orientação do Supremo Tribunal Federal (STF) para os cartórios realizarem requalificação civil sem ação judicial não vem sendo estendida aos não binários. Na prática, o grupo precisa recorrer ao poder judiciário para obter a alteração do prenome e do gênero em sua documentação. É um processo demorado, exaustivo e com poucas chances de sucesso. No Brasil, só cinco pessoas não binárias conquistaram decisões favoráveis para alterar os registros. 

Esse cenário pode começar a mudar graças à ação social que o Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual (Nudiversis) da Defensoria do Rio realizará no próximo dia 26, sexta-feira, na Fiocruz. A equipe espera receber 90 pessoas previamente inscritas. Destas, 48 são não binárias e buscam ter a identidade de gênero registrada na certidão de nascimento, entre elas Igor Sudano. Para a coordenadora do Nudiversis Mirela Assad, a alta de números de inscrições reflete uma urgência de mudança.

— Embora a justiça tente ignorar essa realidade, os não binários existem e estão cada vez mais mobilizados para conquistar direitos. É inaceitável que essas pessoas ainda precisem utilizar ações judiciais para terem suas identidades respeitadas. Esperamos que a grande procura pelo serviço da Defensoria sirva de inspiração para que, em breve, a retificação de gênero possa ser realizada em cartórios, tal qual é feito para homens e mulheres transgênero — diz Mirela.

Graças a uma parceria com o programa Justiça Itinerante do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, os inscritos na ação social deixarão o local com uma sentença judicial em mãos que obrigará os cartórios a alterarem os registros de nascimento imediatamente. Com isso, mais de 40 pessoas não binárias conquistarão em um dia o direito que só cinco já conseguiram obter no Brasil. 

A Coordenadoria Executiva da Diversidade Sexual da Prefeitura do Rio também procurou a equipe do Nudiversis para oferecer apoio ao evento. Agentes do projeto “Assistência em Movimento'' realizarão novas inscrições e atualizações de dados no sistema Cadastro Único, além de oferecerem orientações sobre emissão de documentos e inclusão produtiva. 

A capital do Rio é a cidade de origem da maioria das pessoas que serão atendidas na ação social (57). Em seguida, está Niterói (14), onde Igor Sudano mora. Quando ele ficou sabendo do evento por meio de uma amiga, não pensou duas vezes antes de se inscrever. 

— Eu já me vejo e vivo como uma pessoa não binária, mas o documento traz autoridade. Ajuda a mostrar à sociedade que identidade de gênero não é bobeira, nem crise de identidade de adolescente — explicou. — A mudança do meu registro de nascimento será a minha libertação final — afirmou Igor.

Conheça o Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e Diversidade Sexual
O Nudiversis atua na defesa individual e coletiva dos direitos dos cidadãos LGBTQIA+ e busca fomentar e monitorar a política pública destinada a promover a igualdade deste grupo populacional. Além disso, a coordenação do Nudiversis tem a função de auxiliar e dar suporte aos defensores públicos em atuação em todo o Estado do Rio de Janeiro nos casos que envolvem os direitos das pessoas LGBTQIA+.

O núcleo conta ainda com uma equipe técnica multidisciplinar, composta por profissionais da psicologia e do serviço social, que produzem documentos técnicos para instruir ações judiciais e procedimentos extrajudiciais. A equipe também atua no fortalecimento da rede de serviços de proteção e permite a produção de conhecimento multidisciplinar sobre o acesso à justiça das pessoas LGBTQIA+.

Texto: Thallys Braga



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