“Não me tira daqui não, lá é pior que o inferno”. Esse foi o pedido desesperado ouvido por uma equipe da Defensoria Pública do Rio de Janeiro no interior de um presídio no Estado do Rio de Janeiro, no início de 2022. O relato, feito por um portador de transtornos mentais que preferiu permanecer na Unidade Prisional normal, mesmo sem a medicação necessária, é o retrato vivido por muitas pessoas que estão em hospitais de custódia.
— Recebemos uma ligação de uma pessoa que disse que estava sofrendo maus tratos dentro de um presídio. Quando chegamos lá, nada disso tinha acontecido. Questionamos sobre o ocorrido e aí entendemos o que estava acontecendo: a pessoa sofria de uma condição mental severa e estava há dias sem tomar a medicação. Prontamente nos oferecemos para transferi-lo para um hospital de custódia, onde ele pudesse receber a medicação adequada, mas ele implorou para que isso não fosse feito — conta o ouvidor-geral da DPRJ, Guilherme Pimentel.
As violações de direitos ocorridas em hospitais de custódia do estado vêm sendo monitoradas pela DPRJ há mais de 10 anos. Em vistorias realizadas pela Defensoria Pública, já foram relatados casos de pacientes abrigados em celas comuns quando deveriam ter aparato hospitalar, pessoas recebendo dosagem de remédios acima do indicado, além da falta de médicos e psiquiatras.
Dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais de dezembro de 2022 apontam que, das 832.295 pessoas presas no Brasil, 1.869 são internos em medida de segurança em hospitais de custódia, que têm capacidade para 4.006 pessoas, distribuídas em 27 hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico.
De acordo com a defensora pública Patricia Magno, que atua no tema, a Defensoria tem registrado a situação em documento oficiais do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT).
— Temos acompanhado e monitorado essas violações buscando implementar um trabalho para parar essas violências, que são violências da própria estrutura. Os manicômios judiciários são locais asilares, que não oferecem os direitos previstos na legislação interna e isso precisa ser mudado para já — reforçou a defensora.
Defensoria participa de Grupo de Trabalho que instituiu política antimanicomial
Em fevereiro deste ano, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou a desativação de todos os hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico para pessoas com transtornos e doenças mentais que cometeram crimes no Brasil. A obrigação faz parte da resolução 487, que institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário e promete ser uma solução para as sistemáticas violações de direitos humanos que acontecem nesses locais.
A Defensoria do Rio foi uma das Instituições que fizeram parte do grupo de trabalho para a criação da resolução. Com a medida, os hospitais de custódia, também conhecidos como manicômios judiciários, não poderão aceitar mais internos a partir do mês de agosto, além de terem a obrigação de começar interdições em alas das unidades já existentes.
De acordo com a coordenadora de Defesa Criminal da DPRJ, Lucia Helena de Oliveira, é preciso redirecionar o modelo de assistência em saúde mental, no que diz respeito às pessoas que, eventualmente, estejam envolvidas com infrações penais.
— A Resolução representa a garantia da dignidade humana, saúde, respeito pela diversidade e demais direitos de assento constitucional. No entanto, é necessário que haja um comprometimento de todos os atores do sistema de justiça e, também, de área multidisciplinar para que possamos colaborar com a garantia de direitos, sobretudo com a preservação da vida e saúde mental dessas pessoas — ressalta a coordenadora.
A normativa administrativa do CNJ estabelece ainda que, nas audiências de custódia, caberá à autoridade judicial, após ouvir o Ministério Público e a defesa, o encaminhamento das pessoas com indícios de transtorno mental para atendimento voluntário na Rede de Atenção Psicossocial (Raps).
"Será assegurada à pessoa com indícios de transtorno mental ou qualquer forma de deficiência psicossocial a oportunidade de manifestar a vontade de ter em sua companhia pessoa por ela indicada, integrante de seu círculo pessoal ou das redes de serviços públicos com as quais tenha vínculo, ou seja, referenciada, para o fim de assisti-la durante o ato judicial", diz o parágrafo único do Artigo 4º da resolução.
Grupo de Trabalho
Para elaboração da resolução, o CNJ criou um Grupo de Trabalho com diversos especialistas sobre o tema, juristas, profissionais de saúde, membros da sociedade civil, bem como defensoras(es) públicas(os). Ao longo dos últimos dois anos, o Grupo se reuniu periodicamente para discutir o tema da saúde mental no âmbito de todo ciclo jurídico-penal, desde a audiência de custódia até a execução das medidas.
O trabalho teve como base o caso de Damião Ximenes Lopes, morto aos 30 anos após sofrer maus-tratos em uma clínica psiquiátrica em Sobral (CE), em outubro de 1999. No julgamento, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) ordenou que o Estado brasileiro desenvolvesse programas de formação e capacitação para médicos, psiquiatras, psicólogos e enfermeiros, com base nos princípios internacionais que orientam o tratamento de portadores de transtornos mentais.
Para a defensora Patricia Magno, que representou a Defensoria Pública no grupo no CNJ, a lógica que permeia a resolução não é inovar, mas sim estabelecer procedimentos e diretrizes para implementar a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência e a Lei nº 10.216/2001.
— O sistema de justiça tem muita dificuldade em olhar para quem está nos porões do sistema de justiça e sobretudo para aquelas pessoas que foram selecionadas pelo duplo estigma: da loucura e do crime. O tipo de tratamento de saúde mental tem que ser o mesmo para todas as pessoas. Trancar uma pessoa em um manicômio pela vida toda é muitas vezes uma pena de morte camuflada — conclui Magno.
Texto: Jéssica Leal